Prof. Dr. Antônio Fernando de Araújo Sá
Departamento de História
Universidade Federal de Sergipe
Sant’anna
da Feira: Terra de Lucas. Marcos Franco & Hélcio
Rogério (2012)
A novíssima geração de HQ no Brasil tem articulado
vitalidade criativa com resistência cultural, optando por desenvolver temas relativos
à história social e cultural brasileira. Os polos de produção existentes em
diferentes regiões do país, no mais das vezes, não conseguem atingir o grande
público nas bancas de revistas. Nos anos 1990, visualizamos iniciativas
promissoras de graphics novels
brasileiras, que, infelizmente, tiveram vida efêmera por
conta do monopólio da produção e distribuição dos quadrinhos norte-americanos
no Brasil. Esse é um
problema estrutural dos quadrinhos brasileiros e permanece como questão
insolúvel. O público em geral não tem acesso à novíssima geração dos quadrinhos,
causando certo descompasso entre autor e público, à exceção dos festivais e
feiras realizados para aficionados e colecionadores. Paradoxalmente, a luta pela afirmação cultural dos quadrinhos
brasileiros traz consigo uma liberdade editorial que proporciona
uma pluralidade
de estilos, para além do mercado.
Na última década uma promissora geração
de quadrinistas dos sertões baianos tem atuado à margem do mercado editorial, produzindo
aventuras de rebeldes sertanejos, que desafiaram, em diferentes momentos, a
sociedade brasileira, com histórias bem urdidas e uma produção
gráfico-editorial de qualidade.
Em Paulo Afonso, Haroldo Magno e Edvan Bezerra realizaram dois
álbuns sobre Lampião, Sertão Vermelho.
No primeiro, adotaram uma perspectiva cronológica e factual para registrar um
conjunto de histórias sobre a atuação de Lampião no sertão baiano[1].
Já no segundo versos de cordel de Gonçalo Ferreira
da Silva e Manoel D’Almeida Filho são incorporados à narrativa sequencial,
demonstrando um amálgama de inter-relações culturais entre a cultura popular e
a erudita na construção da história. A colaboração dos desenhistas Júlio
Shimamoto e Eugênio Colonnese aprimoraram as imagens e o roteiro estabeleceu um
detalhamento maior dos diálogos do que no álbum anterior[2].
Marcos Franco e Hélcio Rogério registram
em quadrinhos Lucas de Feira, personagem controverso da história de Feira de
Santana/Bahia. Naturais da cidade, os temas locais balizam suas premiadas
histórias em quadrinhos. No 27° Prêmio Ângelo Agostini, em 2010, receberam os
prêmios de Melhor Roteirista, Melhor Lançamento Independente (Marcos Franco) e
de Melhor Desenhista (Hélgio Rogério), com o álbum Lucas da Vila de Sant'Anna da Feira.
O recém-lançado Sant’Anna da Feira: Terra de Lucas (2012) revela o apuro técnico
dos desenhos nos detalhes dos cenários das diferentes cidades em que a história
se ambienta e da indumentária dos personagens que compõem o álbum. A opção pelo
preto e branco das cenas expressa qualidade e invenção com amplas potencialidades
intertextuais com a xilogravura nordestina.
A narrativa sequencial expõe detalhada
pesquisa histórica, construindo o foco narrativo a partir da captura do temível
escravo rebelde, ante a efusiva festa da população da Vila de Sant’Anna da
Feira. Entre a prisão e a sentença da pena capital a ele imputada, o enredo
traz a memória da sua vida tempestuosa, com evidente simpatia pela sua luta
pela liberdade.
Esse álbum pode
ser inserido nos confrontos da memória de Lucas da Feira em Feira de Santana
(BA), que remonta ao ABC de Lucas de Feira, fundamental na fixação dessa
memória de resistência e rebeldia escrava na cultura baiana. Entre seus
divulgadores podemos mencionar a obra de Jorge Amado. Inclusive, a história em
quadrinhos é encerrada com uma citação de Capitães de Areia (1937),
referente aos destemidos heróis negros da Bahia. A função memorial dos ABCs na
cultura popular nordestina é notória e o ABC de Lucas da Feira relevante, na
medida em que, na maioria das vezes, o negro é visto de forma
negativa e pejorativa na literatura de cordel[3].
Na cidade também encontramos retratado o
corpo negro rebelado de Lucas da Feira nas xilogravuras de Lênio Braga, em
1967, no mural da Estação Rodoviária, trazendo alusões à simbologia da cosmologia
africana e do contexto histórico da ditadura militar, como símbolo de
resistência na cidade.[4].
Em 2008, a Universidade Estadual de
Feira de Santana, por meio do Departamento de Educação e Colegiado de História,
realizou o I Ciclo de Debates – Ensino de
História e Memória sobre as potencialidades de se discutir o ensino de
História a partir da memória de Lucas da Feira. Na oportunidade, Solange Costa
Guerra, vice-presidente da Associação de Moradores da Pedra do Descanso, defendeu
a instalação de um busto de Lucas da Feira no bairro. Esse debate sobre a
criação de monumentos que tragam a heroicidade da história do escravo rebelde simboliza
a tentativa de afirmação identitária dos grupos subalternos em sua busca ao
direito à memória[5].
Presença marcante no imaginário social
da cidade de Feira de Santana, Lucas da Feira foi representado nesses registros
memoriais como símbolo da resistência à violência do sistema escravista. Essa
leitura é compartilhada nos quadrinhos de Marcos Franco e Hélgio Rogério, expondo
preocupação historicista, quase cronológica e factual, no tratamento de cenários
e personagens. Essa busca da
autenticidade do discurso se faz presente na tônica regionalista do roteiro com a utilização de um mosaico de palavras do linguajar
da
época, que requereu um
glossário na parte final do álbum para palavras e expressões pouco usuais.
Entretanto, os traços da tradição oral
africana, que se mesclam na narrativa sequencial, trazem elementos que
estabelecem um circuito entre África/Brasil. Dois exemplos, como é o caso de Ossonhe, orixá que protege os animais da
mata e se aproxima da Caipora, da mitologia indígena. Também a aparição de Legbá, divindade dos fon do Benin
equivalente a Exu dos iorubás, para Lucas da Feira quando de sua prisão, é reveladora
da conexão entre formas de ser, resistir e sobreviver de africanos escravizados
no Brasil, inclusive com o questionamento, ao longo de toda a história em
quadrinhos, da ideia de alma da catequese da religião cristã.
Desse modo, essa opção de mesclar fidelidade
histórica com a tradição oral africana serve para matizar a orientação
historicista de busca da verdade do passado encontrada em abordagens que, por
vezes, esquecem que a arte possibilita outras visagens sobre temas históricos, pois
revelam outras memórias silenciadas ou esquecidas. Assim, a obra de arte pode revelar sonhos e anseios de um mundo mais
justo e humano, destruídos pelo desenvolvimento histórico, estabelecendo
conexões com outros personagens históricos também silenciados.
Como no caso das representações de
Lampião em quadrinhos, na narrativa há uma associação de Lucas da Feira como
filho do “maligno” (p. 23), do diabo, no sentido de que a rebeldia contra as
injustiças sociais é vinculada a uma conotação demoníaca. Outra aproximação com
Lampião é que na narrativa o escravo rebelado também é chamado de “capitão” e
torna-se o temido bandoleiro da boca dos sertões baianos por cerca de 20 anos,
quase que um precursor do cangaceiro mais famoso do Brasil.
Aqui Lucas da Feira, como também
Lampião, é representado como um símbolo contraditório associado a múltiplas
representações que vão do bandido sanguinário ao bandido social, do justiceiro
ao mau-caráter sem escrúpulos.
Essa ambiguidade pode ser vista na
postura moralista do personagem diante de Mané Pinga-Fogo, que se aproveitava
sexualmente das escravas e sofre dura reprimenda por parte de Lucas da Feira
(p. 67-75). Entretanto, noutro momento da narrativa (p. 106), após o
assassinato de um pai de família ele é conivente com o sequestro de suas filhas
por parte do seu bando, com claras intenções sexuais. Chama a atenção é que o
algoz no momento do seu enforcamento é o mesmo irmão das meninas, que lava sua
sede de vingança pelos crimes perpetrados por Lucas e seu bando.
Patrocinado pelo Fundo de Cultura da
Secretaria da Cultura do Estado da Bahia, esse álbum de quadrinhos articula
fidelidade e imaginação, o que possibilita interessante discussão sobre
mediações entre oralidade, escritura e iconografia na construção da memória sobre
Lucas da Feira. Ao mesmo tempo em que evidencia a existência de uma produção quadrinística de qualidade fora
do eixo Rio-São Paulo, também reafirma a atualidade da luta em defesa da
distribuição de HQs, em todo o território nacional, que abordem temas nacionais
e regionais de modo a que o grande público conheça a diversidade histórica e
cultural do nosso país.
[1]
MAGNO, Haroldo e BEZERRA, Edvan. Sertão
Vermelho: Lampião em Quadrinhos. Paulo Afonso/BA: Editora Fonte Viva, 2004.
[2]
MAGNO, Haroldo e BEZERRA, Edvan. Sertão
Vermelho 2: Lampião em Quadrinhos. Paulo Afonso/BA: Editora Fonte Viva,
2005.
[3]
SANTOS, Olga de Jesus & VIANNA, Marilena. O negro na literatura de cordel. Rio de Janeiro: Fundação Casa de
Rui Barbosa, 1989.
[4]
ANTONACCI, Maria Antonieta. ÁFRICA/BRASIL: corpos, tempos e histórias
silenciadas. Tempo e Argumento: Revista
do Programa de Pós-Graduação em História. Florianópolis, v. 1, n. 1, p. 46 –
67, jan./jun. 2009.
[5]
ASCOM/UEFS. Estudos sobre Lucas da Feira abrem novas perspectivas para a
História. 27 de agosto de 2008. Consultado em 06/01/2013 no endereço eletrônico
http://www.uefs.br/portal/noticias/2008/lucas-da-feira-abre-novas-perspectivas-para-a
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