segunda-feira, 21 de outubro de 2013

“MORRE(R) EM/DE PÉ”

Nos poucos dias de férias em Ponta Negra, retomei contato com velhos amigos da infância brasiliense. Foram muitas recordações de estripulias na 312 norte. Tempos em que o parque Olhos d’Água era apenas a Argila para nosotros. O futebol era o principal assunto da molecada e o Brasil vivia anos de chumbo. Lembramos uma partida em que João chutou longe um pênalti e fizemos uma música, cantada durante o retorno de ônibus para casa. João Matão é uma tristeza, chutou a bola Ceará, Fortaleza. A repressão era uma constante, inclusive a pelada jogada na grama era impedida quando da chegada do graminha, como eram conhecidos os funcionários do Departamento de Parques e Jardins (DPJ). Perturbávamos a ordem (e o progresso). Mesmo assim resistíamos, fugindo para o mato para pegar cajus do cerrado ou gabiroba ou ainda tomarmos banhos no olho d’água perto da 511 norte, que chamávamos Minas Brasília Terra Clube, em alusão à impossibilidade de frequentar o clube de classe média. Bons tempos aqueles.
Meu amigo não o encontrava há uma década, mas o papo fluía como se tivéssemos conversado ontem. Contou-me das andanças por Goiás, Mato Grosso e Pará. Mas é Natal que ele gosta. Deixou de beber e agora vive recluso e pratica aikidô e defesa pessoal. Era um galo de briga na infância e precisa exercitar os músculos para não enferrujar. Os cabelos estão escassos, mas o bom papo e a inquietude continuam os de sempre. Sua casa proporcionou-me bela vista daquela que outrora era uma das mais lindas praias do Brasil, quando se podia subir o morro do Careca. É impressionante como a indústria do turismo acaba com o ar bucólico de qualquer lugar. As pedras jogadas por retroescavadeiras da prefeitura na praia são sintomas inexoráveis do aquecimento da mãe terra.
Entediados com as constantes interpelações de ambulantes e agentes de turismo no litoral potiguar, fomos conhecer um pouco dos sertões do Rio Grande do Norte. A viagem à Borborema potiguar foi ciceroneada por um proprietário rural, que resolvera investir no agreste, depois dos insucessos no sertão do Seridó. A S-20 possuía todos os confortos para uma viagem tranquila e o seu conhecimento da região foi uma aula de sabedoria no manejo da terra e dos bichos. Localizada no sopé da serra, a propriedade é afeita ao criatório do bode, um dos meus pratos prediletos. Existem ainda madeiras de lei e um rio sazonal. A construção de um açude busca amenizar a seca, que nos últimos anos tem sido cada vez mais severa. Filho de sertanejos, contou-me que a origem da família na região do Seridó remonta duzentos anos. Ouvi com atenção a história da família, fascinado, entre baforadas de cigarros de palha. O sítio onde nascera marcou-lhe os cromossomos e a cidade grande o deixa nervoso. O discurso era balizado pela mídia, defendendo a iniciativa privada e reafirmando a incompetência do Estado em gerir a coisa pública. Queria fazer bonito ao forasteiro, dizendo que assinava diversas revistas de atualidade. Perguntei-lhe quais eram as revistas? Veja e Época. Era óbvio. Vociferava contra as obras inconclusas da transposição do rio São Francisco, sempre falando da corrupção e incúria do governo federal. Na tentativa de mudar o assunto, comentei da repressão policial contra a manifestação dos professores do Rio de Janeiro e ele destilava o fel contra a manifestação dos Black blocks ou dos vândalos, como preferia chamar. Curiosamente, não sabia distinguir o que era público ou privado nas depredações dos manifestantes. Também não acreditava que os policiais haviam reprimido duramente uma manifestação dos professores no Rio, mas sim os ditos vândalos. Falei da charge de Brum que vi na Tribuna do Norte, de Natal, sobre as brincadeiras de crianças de ontem (polícia X ladrão) e as de hoje (polícia X professor). Foi o estopim para uma longa discussão sobre os rumos do país. O jovem fazendeiro brandia que o MST e os sindicatos atrapalhavam a vida do agronegócio e deu-me um exemplo da manutenção do mandonismo nos sertões ignotos do Brasil. Quando quis demitir um funcionário da fazenda que geria para a família, levou consigo uma espingarda e afirmou que nenhum sindicato impediria a demissão do morador e família. Este tentou resistir, mas a casa fora abaixo, não lhe deixando alternativa a não ser sair. Será que entramos mesmo na pós-modernidade tão aludida nos grandes centros cosmopolitas?
Voltei para Natal e pensei que país é esse?
Como dizia Marshall Berman, meu marxista novaiorquino predileto nos anos 1980: moderno subdesenvolvimento.
Busquei lugares pitorescos da terra de Câmara Cascudo. O linguajar potiguar me guardava surpresas incríveis. Quando do jogo no Frasqueirão, a fanática torcida do ABC xingava o árbitro de “galado” e quando voltávamos para sua bela casa paramos numa barraca que vendia churrasquinho, conhecida como “morre em pé”. O sujeito bebia cachaça e comia e morria em pé. Sorri e lembrei-lhe que eu preferia, como os professores cariocas, “morrer de pé”, na inglória luta pela educação pública, gratuita e de qualidade.

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