Nos poucos dias de férias em Ponta Negra,
retomei contato com velhos amigos da infância brasiliense. Foram muitas
recordações de estripulias na 312 norte. Tempos em que o parque Olhos d’Água
era apenas a Argila para nosotros. O futebol era o principal assunto da
molecada e o Brasil vivia anos de chumbo. Lembramos uma partida em que João chutou
longe um pênalti e fizemos uma música, cantada durante o retorno de ônibus para
casa. João Matão é uma tristeza, chutou a bola Ceará, Fortaleza. A repressão
era uma constante, inclusive a pelada jogada na grama era impedida quando da
chegada do graminha, como eram conhecidos os funcionários do Departamento de
Parques e Jardins (DPJ). Perturbávamos a ordem (e o progresso). Mesmo assim
resistíamos, fugindo para o mato para pegar cajus do cerrado ou gabiroba ou
ainda tomarmos banhos no olho d’água perto da 511 norte, que chamávamos Minas
Brasília Terra Clube, em alusão à impossibilidade de frequentar o clube de
classe média. Bons tempos aqueles.
Meu amigo não o encontrava há uma década,
mas o papo fluía como se tivéssemos conversado ontem. Contou-me das andanças
por Goiás, Mato Grosso e Pará. Mas é Natal que ele gosta. Deixou de beber e
agora vive recluso e pratica aikidô e defesa pessoal. Era um galo de briga na
infância e precisa exercitar os músculos para não enferrujar. Os cabelos estão
escassos, mas o bom papo e a inquietude continuam os de sempre. Sua casa proporcionou-me
bela vista daquela que outrora era uma das mais lindas praias do Brasil, quando
se podia subir o morro do Careca. É impressionante como a indústria do turismo
acaba com o ar bucólico de qualquer lugar. As pedras jogadas por
retroescavadeiras da prefeitura na praia são sintomas inexoráveis do
aquecimento da mãe terra.
Entediados com as constantes interpelações
de ambulantes e agentes de turismo no litoral potiguar, fomos conhecer um pouco
dos sertões do Rio Grande do Norte. A viagem à Borborema potiguar foi
ciceroneada por um proprietário rural, que resolvera investir no agreste,
depois dos insucessos no sertão do Seridó. A S-20 possuía todos os confortos
para uma viagem tranquila e o seu conhecimento da região foi uma aula de
sabedoria no manejo da terra e dos bichos. Localizada no sopé da serra, a
propriedade é afeita ao criatório do bode, um dos meus pratos prediletos.
Existem ainda madeiras de lei e um rio sazonal. A construção de um açude busca
amenizar a seca, que nos últimos anos tem sido cada vez mais severa. Filho de
sertanejos, contou-me que a origem da família na região do Seridó remonta
duzentos anos. Ouvi com atenção a história da família, fascinado, entre
baforadas de cigarros de palha. O sítio onde nascera marcou-lhe os cromossomos
e a cidade grande o deixa nervoso. O discurso era balizado pela mídia,
defendendo a iniciativa privada e reafirmando a incompetência do Estado em
gerir a coisa pública. Queria fazer bonito ao forasteiro, dizendo que assinava
diversas revistas de atualidade. Perguntei-lhe quais eram as revistas? Veja e Época. Era óbvio. Vociferava contra as obras inconclusas da
transposição do rio São Francisco, sempre falando da corrupção e incúria do
governo federal. Na tentativa de mudar o assunto, comentei da repressão policial
contra a manifestação dos professores do Rio de Janeiro e ele destilava o fel
contra a manifestação dos Black blocks ou dos vândalos, como preferia chamar.
Curiosamente, não sabia distinguir o que era público ou privado nas depredações
dos manifestantes. Também não acreditava que os policiais haviam reprimido
duramente uma manifestação dos professores no Rio, mas sim os ditos vândalos.
Falei da charge de Brum que vi na Tribuna
do Norte, de Natal, sobre as brincadeiras de crianças de ontem (polícia X ladrão)
e as de hoje (polícia X professor). Foi o estopim para uma longa discussão
sobre os rumos do país. O jovem fazendeiro brandia que o MST e os sindicatos
atrapalhavam a vida do agronegócio e deu-me um exemplo da manutenção do
mandonismo nos sertões ignotos do Brasil. Quando quis demitir um funcionário da
fazenda que geria para a família, levou consigo uma espingarda e afirmou que
nenhum sindicato impediria a demissão do morador e família. Este tentou
resistir, mas a casa fora abaixo, não lhe deixando alternativa a não ser sair.
Será que entramos mesmo na pós-modernidade tão aludida nos grandes centros
cosmopolitas?
Voltei para Natal e pensei que país é esse?
Como dizia Marshall Berman, meu marxista
novaiorquino predileto nos anos 1980: moderno subdesenvolvimento.
Busquei lugares pitorescos da terra de
Câmara Cascudo. O linguajar potiguar me guardava surpresas incríveis. Quando do
jogo no Frasqueirão, a fanática torcida do ABC xingava o árbitro de “galado” e
quando voltávamos para sua bela casa paramos numa barraca que vendia
churrasquinho, conhecida como “morre em pé”. O sujeito bebia cachaça e comia e
morria em pé. Sorri e lembrei-lhe que eu preferia, como os professores
cariocas, “morrer de pé”, na inglória luta pela educação pública, gratuita e de
qualidade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário