quarta-feira, 6 de junho de 2012

Ibarê Dantas e a Historiografia Sergipana


Antônio Fernando de Araújo Sá - Prof. Dr. do Departamento de História/Universidade Federal de Sergipe
Falar sobre o tema dessa mesa redonda implica em duas perspectivas que se articulam e se complementam. A primeira é a dimensão pessoal da amizade que nutro pelo professor e historiador Ibarê Dantas, um dos principais interlocutores que tenho em terras sergipanas para discussões históricas, historiográficas e literárias. Mesmo divergindo sobre o uso das imagens em sua obra como ilustração e não como problema histórico, ressalto a seriedade profissional no trato dos documentos e o cuidado que o historiador tem de fundir aspectos teóricos e práticos do fazer histórico e historiográfico. A segunda foi minha experiência docente desenvolvida na disciplina Historiografia Brasileira, ministrada no Departamento de História da Universidade Federal de Sergipe ao longo dos anos 1990, em que propus a transformá-la numa oficina de trabalho. Nesse sentido, em colaboração com os estudantes da disciplina, fiz diversas entrevistas com historiadores, que foram publicadas na então recém-criada revista Cadernos UFS: História, da qual fui fundador e editor dos quatro primeiros números.

O impacto positivo dessa atividade didática, desenvolvida em conjunto com outros professores do curso de História, também produziu monografias de graduação sobre autores sergipanos, tais como as monografias de Itamar Freitas sobre Sebrão Sobrinho, Norberto Oliveira sobre Maria Thétis Nunes, Claudefranklin Monteiro Santos sobre Manuel Bonfim, Ademir Pinto de Menezes sobre Silvério Fontes, Carlos Antônio dos Santos sobre José Calasans, entre outros.

No contexto da história da historiografia sergipana, o conjunto da obra de Ibarê Dantas pode ser considerado como exemplo de renovação dos métodos e técnicas da pesquisa histórica em Sergipe, fruto do preparo teórico propiciado pela formação universitária do historiador. De um modo geral, sua obra busca articular, teoricamente, a contribuição gramsciana com a vertente weberiana, com a influência difusa da matriz disciplinar dos Annales, que deu pouca atenção à história política, pelo menos até recentemente. Essa proposta reflete o diálogo entre a história e as ciências sociais em torno da história política do Estado de Sergipe, preocupando-se em articular a teoria política e a pesquisa histórica em arquivos públicos e privados.

Uma característica salutar de seu trabalho é a preocupação em estabelecer sínteses da história de Sergipe que possibilitam uma visão mais totalizante, que amplia o nosso horizonte de análise, numa época marcada por monografias cada vez mais paroquiais. O problema de fundo em toda sua obra é o debate sobre a democracia e a cidadania no Brasil e suas vicissitudes, com destaque para dois grandes temas: a presença política dos militares e o processo político-partidário na história da República em Sergipe.

No seu primeiro livro, publicado em 1974, podemos ressaltar o pioneirismo da utilização da metodologia da história oral, em que contextualiza o movimento tenentista dentro da conjuntura nacional, entrevistando onze personagens contemporâneos e/ou sobreviventes do movimento. Centrando-se na liderança de Augusto Maynard, o trabalho acompanha as revoltas de 1924 e 1926 e seus desdobramentos até 1930 .

No livro sobre a revolução de 1930 em Sergipe, produto de dissertação de mestrado em Ciência Política na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), é perceptível um desenvolvimento teórico mais refinado, com a incorporação de conceitos como o de Estado de Compromisso, defendido por Francisco Weffort e Boris Fausto, com evidente influência de pensadores marxistas, como Antonio Gramsci e Nicos Poulantzas. Talvez por isso haja grande destaque à emergência dos trabalhadores urbanos na cena política em Sergipe em meio ao autoritarismo vigente à época .

Já suas reflexões sobre o coronelismo trazem uma perspectiva nova para pensar o fenômeno, questionando as leituras clássicas da historiografia, como a de Vitor Nunes Leal, tomando como ponto de partida a história de Sergipe. O valor dessa obra é recuperar a historicidade do coronelismo, mostrando suas mutações periódicas, ao mesmo tempo em que busca estabelecer uma conceituação que dê conta de sua correlação com o Estado e com o desenvolvimento do capitalismo no campo .

Sobre esse livro, diferentemente do autor, penso que a leitura de Vitor Nunes Leal permanece ainda atual, pois não podemos afirmar que o fenômeno do coronelismo ultrapassou o imediato pós-guerra, mas sim resquícios que sobreviveram da estrutura social arcaica no mundo rural brasileiro.

Talvez a principal contribuição de Ibarê Dantas seja o livro sobre o período da ditadura militar em Sergipe, quando polemiza com vertente explicativa que caracteriza a intervenção militar de 1964 como “golpe de estado”, como foi o caso de Manoel Correia de Andrade, em 1964 e o Nordeste . Para Dantas, podemos caracterizá-la como “contra-revolução”, tanto pelo caráter preventivo e neutralizador das tendências socializantes que se esboçavam, quanto pelo seu sentido propositivo, pois os novos atores buscaram imprimir nova orientação econômico-social mais próxima ao padrão de acumulação capitalista dos países hegemônicos. Suas ideias se aproximam, assim, de autores como Fernando Henrique Cardoso, especialmente no que se refere à caracterização de Estado Autoritário. Do ponto de vista metodológico, Dantas manteve a história oral como uma de suas principais fontes de pesquisa, entrevistando cerca de quarenta e duas pessoas de origem e participação variada à época da ditadura civil-militar .

Creio que é importante matizar essa ideia de contra-revolução, na medida em que nos depoimentos colhidos por Maria Celina D´Araújo, Gláucio Soares e Celso Castro vislumbram-se o papel central do anticomunismo na explicação dos motivos que levaram ao golpe, mas a tomada do poder foi “resultado de ações dispersas e isoladas, embaladas, no entanto, pelo clima de inquietação e incertezas que invadiu a corporação” . Assim, não havia um projeto de governo entre os vencedores, sendo o mesmo moldado ao longo do exercício do poder, especialmente para conter os excessos da chamada linha dura como forma de garantir a unidade militar.

Os outros livros do historiador objetivam uma leitura de síntese da história de Sergipe, sob variadas dimensões. Um deles trata das disputas político-partidárias do Estado Oligárquico ao Estado Populista, abarcando o período de 1889 a 1964. Dentro de uma perspectiva globalizante, com um viés estrutural de modelo classista, essa síntese utiliza categorias das ciências sociais, como partido político, sistema partidário, classe social, sociedade civil, sociedade política, Estado etc., para dar conta de como as organizações políticas locais se inseriam nos projetos nacionais . O outro pode ser considerado como desdobramento desse livro anterior, por centrar-se nas dez eleições ocorridas em Sergipe entre 1985 e 2000, enfocando cada pleito, mas buscando apresentar uma visão de conjunto do desempenho dos partidos ao longo do período analisado .

A história republicana de Sergipe é retratada numa perspectiva de compreender como foi construído o Estado republicano e a sociedade democrática, baseando-se nos aspectos político-administrativo, econômico-social e cultural para perceber o processo contraditório de avanços e recuos na consolidação da experiência republicana em Sergipe .

Por fim, destoando de sua produção intelectual anterior, mas acompanhando uma tendência marcante da historiografia contemporânea, Dantas se debruça sobre a biografia de Leandro Ribeiro de Siqueira Maciel, voltando-se para a política provincial sergipana. Fruto de pesquisa paciente e criteriosa, baseada em cartas, inventários, livros de registros, anais, relatórios e jornais, sua proposta de análise manteve-se próxima do diálogo entre a ciência política, a filosofia e a história, agora pautado na ideia de Hannah Arendt de analisar a “pessoa no mundo” e não o “mundo da pessoa”, o que fez com que priorizasse o homem político inserido no processo político. Desse modo, além da atuação do bacharel patriarca, a biografia possibilita a compreensão das práticas políticas do seu tempo, demonstrando, muitas vezes, procedimentos e comportamentos ilícitos da política provincial sergipana .

A escolha temática do XIV Encontro Sergipano de História de se debruçar sobre a historiografia de Ibarê Dantas não poderia ser mais oportuna, pois possibilita que as novas gerações possam travar contato com uma obra que representa um marco na historiografia sergipana, na medida em que simboliza a passagem do autodidatismo historiográfico para a profissionalização do ofício de historiador em Sergipe, em sintonia com as tendências historiográficas contemporâneas. Ao mesmo tempo, penso que pode incentivar o estudo da história da historiografia de Sergipe, campo intelectual em que poucos historiadores se aventuraram, até o momento. Talvez a recente inclusão da disciplina Historiografia Sergipana no currículo de Licenciatura em História da Universidade Federal de Sergipe possa modificar esse quadro, abrindo numa nova fase das pesquisas historiográficas, com novos temas e novas abordagens.


1 Intervenção na Mesa Redonda Ibarê Dantas e a Historiografia Sergipana realizada no XIV Encontro Sergipano de História. São Cristóvão, Departamento de História, 28-31 de maio de 2012.
2 DANTAS, Ibarê. O tenentismo em Sergipe (Da revolta de 1924 à Revolução de 1930). Petrópolis: Vozes, 1974.
3 DANTAS, Ibarê. A Revolução de 1930 em Sergipe: dos Tenentes aos coronéis. São Paulo: Cortez, 1983.
4 DANTAS, Ibarê. Coronelismo e dominação. Aracaju: UFS/Diplomata, 1987.
5 ANDRADE, Manuel Correia de. 1964 e o Nordeste: Golpe, revolução ou contra-revolução? São Paulo: Contexto, 1989 (Coleção Repensando a História).
6 DANTAS, Ibarê. A Tutela Militar em Sergipe (1964-1984). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.
7 D´ARAÚJO, Maria Celina, SOARES, Gláucio Ary Dillon & CASTRO, Celso (orgs.). Visões do Golpe: A Memória Militar sobre 1964. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994.
8 DANTAS, Ibarê. Os Partidos Políticos em Sergipe (1889-1964). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989.
9 DANTAS, Ibarê. Eleições em Sergipe (1985-2000). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002.
10 DANTAS, Ibarê. História de Sergipe: República (1889-2000). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2004.
11 DANTAS, Ibarê. Leandro Ribeiro de Siqueira Maciel (1825-1909). Aracaju: Criação, 2009.

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