ESCOLA SEM PARTIDO E A CULTURA DO ÓDIO:
UMA CRÍTICA A PARTIR DA PEDAGOGIA DA AUTONOMIA, DE PAULO FREIRE[1].
Prof. Dr. Antônio Fernando de
Araújo Sá
Departamento de História
Universidade Federal de Sergipe
“Sou professor a favor da esperança
que me anima apesar de tudo”
Paulo Freire (2009: p. 103).
A atitude desrespeitosa que o movimento
Escola Sem Partido impõe às ideias de Paulo Freire se situa, mas não pode ser justificada,
pelo antagonismo de posições frente à prática educativa. A batalha das ideias deve
ser realizada de modo em que se possa ouvir o outro e não desrespeitá-lo, como
vem sendo feito, sistematicamente, pelo site
do referido movimento com fortes conotações reacionárias e policialescas.
Iniciado em 2004, pelo advogado Miguel
Nagib, a Escola Sem Partido parte do princípio de que o professor não é
educador, estabelecendo a dissociação entre educação e instrução. Para seus
membros, o ato de educar seria de responsabilidade da família, da religião e à
escola caberia o ato de instruir (PENNA, 2016: p. 46).
É exatamente contra este tipo de
pedagogia que Paulo Freire se levantou faz cinco décadas em vários de seus
livros, como Pedagogia do Oprimido, Pedagogia da Esperança e Pedagogia da Autonomia. É a partir deste
último livro que vou me basear para estabelecer uma crítica à Escola Sem
Partido, que vem ganhando corações e mentes por conta do mais completo desconhecimento
de seus princípios pautados na cultura do ódio e do denuncismo.
Para Paulo Freire, “formar é muito mais do que treinar
o educando no desempenho de destrezas. (...) Daí a crítica permanentemente
presente em mim à malvadeza neoliberal, ao cinismo de sua ideologia fatalista e
sua recusa inflexível ao sonho e à utopia” (2009: p. 14). Ensinar não é “transferir conhecimento, mas criar as possibilidades
para sua produção ou a sua construção” (p. 22).
Escrito em 1996, no auge das ideias
neoliberais no Brasil, o eminente educador já percebia os desdobramentos dessa
ideologia na educação, antecipando-se a alguns dos princípios da Escola sem
Partido, como o professor como prestador de serviço, a criminalização da
atividade docente e à infantilização do discente.
Esse movimento reacionário afirma que o
docente não pode intervir no debate contemporâneo, comentando temas presentes
no noticiário nacional ou internacional. Tal proposta tem por objetivo precípuo
afastar a escola do mundo concreto, instituindo uma suposta neutralidade como
contraponto à suposta ideologização ou doutrinação daqueles que trazem esses
temas à sala de aula. Pior, nos textos deste movimento, a sala de aula aparece como
o lugar da “audiência cativa”, em que o estudante aparece como o elo mais fraco
da relação educador e educando, reduzindo-o a mais absoluta passividade. A
linguagem da cultura do ódio chega ao absurdo de associar o “professor
doutrinador” e o “aluno doutrinado” à síndrome de Estocolmo, em que o “aluno
sequestrado” estabelece uma relação afetiva com o “sequestrador intelectual”
(PENNA, 2016: p. 53).
Essa linguagem policialesca atravessa
toda a proposta, embrutecendo a relação entre educador e educando. Inclusive no
site do referido movimento há uma
seção para denúncias contra professores doutrinadores. Os efeitos de tal
procedimento já tem surtido efeito no âmbito das salas de aula, com o
patrulhamento ideológico de professores, conforme registrado em debate na sede
regional de Japaratuba do Sindicato dos Trabalhadores da Educação do Estado de
Sergipe (SINTESE).
Paulo Freire serve de contraponto a essa
ideia absurda de aluno como objeto passivo, lembrando-nos que não existe
docência sem discência “e as duas se explicam e seus sujeitos apesar das
diferenças que os constam, não se reduzem à condição de objeto, um do outro.
Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender” (2009: p. 23).
Portanto, a educação só pode ser vista como construção coletiva entre os
sujeitos dessa relação e não como mera transferência de conhecimento.
Mas talvez o mais grave da proposta seja
a prevalência dos interesses privados sobre o interesse comum, quando afirma
que o professor não pode contrariar as concepções religiosas e ideológicas das
famílias do educando. Tal ideia pode ser caracterizada como um dos principais obstáculos
para o avanço da democracia no Brasil. Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil (1936), busca entender
por que a democracia foi um “mal entendido” no Brasil? Segundo o autor, a cultura da personalidade surge
como obstáculo à modernidade e à democracia, na medida em que há prevalência da
esfera privada nas formas de socialização e do afeto nas relações cotidianas. “Em terra onde todos são barões não é possível
acordo coletivo durável” (HOLANDA, 1983: p. 4).
O projeto Escola sem Partido obstaculiza
a democracia exatamente por não saber lidar com a diversidade e a diferença,
tentando impor uma visão familiar e privada no universo escolar, marcado pelo
pluralismo de sujeitos. Entretanto, o fulcro do combate é a transversalidade
proposta pelos Parâmetros Curriculares Nacionais, no que tange aos princípios
relacionados à ética, pluralidade cultural, orientação sexual, trabalho e meio
ambiente. É contra a questão de gênero que os reacionários tentam ganhar
setores sociais com o argumento de se quer destruir e perverter a família
tradicional e a orientação sexual das crianças (PENNA, 2016: p. 53).
Entendo que a teoria de gênero pode
contribuir para desconstruir dominações cotidianas, como machismo, homofobia e
outras formas de desigualdade de gênero, fortalecendo o avanço do processo de
democracia no Brasil. O retrocesso da proposta do movimento se associa ao governo
de Michel Temer, oriundo de um golpe parlamentar e midiático, pois seus
representantes ou defensores são recebidos em audiência pelo ministro da
Educação, Mendonça Filho, que, em portaria, impõe a redução do número de vagas
nas universidades, enquanto os sindicatos dos docentes e técnicos
administrativos sequer passam da porta do ministério.
Para concluir, devemos lutar por uma
educação democrática que tenha como fundamento o respeito pela diferença, mas
também que garanta as mínimas condições para o exercício docente. Nesse
contexto em que o governo Temer, articulada à campanha insidiosa da mídia
corporativa e banqueiros, impõe o congelamento de investimentos em vinte anos,
por meio da PEC 241 e uma reforma do ensino médio via medida provisória, só nos
resta, como docentes e cidadãos, nos rebelarmos e não nos resignarmos à
barbárie e o retrocesso em curso na sociedade brasileira.
BIBLIOGRAFIA
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. 39ª. Edição. São Paulo: Paz e Terra, 2009.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 16ª. Edição. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1983.
PENNA, Fernando de Araújo. Programa
Escola Sem Partido: Uma ameaça à educação emancipadora. In: GABRIEL, Carmen
Teresa; MONTEIRO, Ana Maria; MARTINS, Marcus Leonardo Bomfim (org.). Narrativas do Rio de Janeiro nas aulas de
história. Rio de Janeiro: MAUAD X, 2016, p. 43-58.
WWW.programaescolasempartido.org.
Acessado em 19 de outubro de 2016.
[1]
Texto de intervenção no debate sobre Escola sem Partido, em Japaratuba/SE,
dentro das atividades pré-congressuais do SINTESE (21/10/2016),
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