quarta-feira, 2 de outubro de 2013

RUÍNAS DA MODERNIDADE, por Fernando Sá


PARA HOMENS

Convencer é infrutífero
Walter Benjamin


Depois de uma caminhada na praia de Atalaia, percebi que meus cabelos estavam revoltos, como meu velho fusquinha 68. Decidi apará-los, junto com os da venta. O calor de setembro estava, como de costume, abrasador no centro da cidade. Apressado, não encontrei vaga no estacionamento costumeiro. Senti saudades de quando morei no edifício Teófilo Dantas, duas décadas atrás. O ritmo da cidade está incompatível com meus cabelos brancos. Barbosa fumava um cigarro na entrada do salão Unidos, símbolo da resistência do velho ofício de barbeiro. Como as barbearias, as livrarias do centro fecharam quase todas. Poucas são as lembranças da mitológica livraria Regina, que não tive a oportunidade de conhecer. Até o Cacique Chá fechou.
Depois do corte rotineiro, resolvi comer o tradicional acarajé próximo à Catedral. O saboroso tempero da baiana continua o mesmo, mas, como a cidade, tinha pressa em chegar ao trabalho. De súbito, deparei-me com uma estátua representando a memória indígena em Sergipe. O lixo ao redor sugeria que os transeuntes apressados, há muito, não prestavam atenção naquele monumento.
Curioso, perguntei aos memorialistas e historiadores da cidade sobre aquela estátua, sem encontrar respostas, simples alusões que levavam ao esquecimento. Todavia, o acaso me trouxe um artigo do arguto jornalista Paulo Costa, no Sergipe-Jornal, de 23 de março de 1950, sobre o parque Teófilo Dantas como exemplo da inteligência criadora de Corinto Mendonça. Para o jornalista, a beleza paisagística, que emanava no “Lago das Ninfas”, na “Cabana dos Índios”, na “Cascata” e no “Aquário”, realçava o encantamento estético da cidade que se modernizava nos anos 1950. Contudo, a mutilação da obra já era percebida por Costa, explicando que os artistas “nesse Sergipe comercialista e utilitarista por excelência, não merecem as atenções do poder público”. Dessa crônica, surpreendeu-me ideias tão atuais, ainda que escritas em antanho.

Fotografia do autor (22/09/2012)

A cena foi tão impactante que fotografei, com a câmara do celular, a estátua faz um ano, mas somente hoje consigo escrever essas mal traçadas linhas. Sabemos que as praças públicas se constituem em fontes imprescindíveis para a história local, pois possibilitam refletir as ações, às vezes inações, das gestões municipais, bem como são lugares de memória para pensarmos a cidadania.

O registro talvez não possa trazer detalhes significativos para o leitor, por conta da qualidade do meu celular, que não acompanhou a incrível velocidade da tecnologia. Contudo, de imediato, saltou-me à lembrança o sugestivo livro de Ariosvaldo Figueiredo sobre os índios de Sergipe, intitulado Enforcados (1981), revelador do caráter cruento da história de Sergipe e da extrema violência das classes dominantes contra os índios e seus remanescentes. Caía por terra a imagem romântica e idealizada da representação do índio que o monumento traduzia à época de sua inauguração. O índio, ao longo da história do Brasil, resistiu bravamente à ocupação do seu território, à sua eliminação física (genocídio) e cultural (etnocídio). A estátua não dava conta dessa altivez identitária. O braço arrancado do índio e a cabeça destroçada da índia simbolizam o massacre dos índios sergipanos. Até quando manteremos a mentalidade colonizadora da cultura europeia em terras brasileiras? Será que a opinião pública brasileira ficará omissa com o extermínio físico do índio e a apropriação de suas terras? Isso é uma afronta ao decoro de uma nação que se quer civilizada e não podemos considerar os índios como ruínas de povos, como o fez Von Martius no século XIX. Eles são, histórica e culturalmente, o diferencial entre nós e os outros. O direito à memória e à vida são os bens que podemos deixar para redimir-lhes da opressão secular da modernidade.

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