Prof. Dr. Antônio Fernando de Araújo Sá
Departamento de História
Universidade Federal de Sergipe
Após alguns anos sem ofertar a
disciplina Estudos Culturais no
Programa de Pós-Graduação em Letras, resolvi rever meu diálogo com os textos
clássicos e atualizar a bibliografia. Os Estudos Culturais constituem-se em uma
das mais significativas disciplinas de crescimento acadêmico em fins do século
XX e princípios do século XXI. Apesar de, na origem, serem uma invenção
britânica, em sua forma contemporânea se tornaram um fenômeno
internacional.
O projeto dos Estudos Culturais se
insere num contexto mais amplo de lutar por uma sociedade mais democrática e
igualitária. Talvez uma de suas maiores contribuições do ponto de vista da
teoria cultural seja a incorporação da cultura popular como campo de estudos e
pesquisas nas universidades. A vida das pessoas comuns não fazia parte do
pensamento acadêmico tradicional, ignorando a própria vida, como disse certa vez
Terry Eagleton.
Outras contribuições podem ser
lembradas, como a questão de gênero e
sexualidade ou as teorias pós-coloniais. Entretanto, vou me restringir nesse
artigo àquela primeira contribuição.
Em meio ao longo debate sobre o
tema, compartilho da proposta de Marilena Chauí, que entende cultura popular como expressão dos dominados, buscando as formas pelas quais a
cultura dominante é aceita, interiorizada, reproduzida e transformada, tanto
quanto as formas pelas quais é recusada, negada e afastada, implícita ou
explicitamente, pelos dominados.
O leitor mais inquieto pode
se perguntar o que esse assunto tem a ver com o calendário da pós-graduação na Universidade
Federal de Sergipe? Tudo a ver. Ao cadastrar as atividades da disciplina Estudos Culturais no SIGAA, fui
surpreendido com a inclusão dos dias de São João (24 de junho) e da Emancipação
Política de Sergipe (8 de julho) como dias letivos. Pensei haver algum equívoco
e consultei a Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa, mas a resposta confirmou
não haver equívoco algum!
Talvez um pouco de história
possa desfazer esse mal entendido burocrático.
As festas
tradicionais do mês de junho eram eminentemente
agrárias, cuja temporalidade era cíclica (tempo sazonal, tempo lunar, tempo do
ciclo agrário). A data da festa de São João coincide com o solstício do verão,
evento de mudança no percurso da órbita solar, com alterações na duração da
luminosidade do dia e do calor, repercutindo por este motivo nos trabalhos
agrícolas. Os povos primitivos, principalmente os europeus, estiveram sempre
atentos a estas mudanças ocorridas nesta época do ano, atribuindo-lhes fatores
mágico-religiosos. A festa do verão no Hemisfério Norte era o momento desses
povos festejarem a fertilidade da terra, incluindo da própria humanidade. Nessa
festa sempre esteve presente, desde tempos imemoriais, o FOGO. Além da ligação
direta entre o sol - fonte de luz e do calor - e o fogo, se estabeleceu também
uma identificação entre o fogo e o sexo. Podemos encontrar metáforas, objetos e
símbolos do ciclo junino, a maioria relativa aos fogos, evocadoras do sexo,
como a forma fálica e a nomenclatura adotada por fogueteiros, para seus
produtos.
Encontramos também práticas de adivinhação realizadas nas festas de São João -
"Moças e rapazes tiravam sortes" -, que nos remetem, segundo Câmara
Cascudo, às modalidades dos diversos oráculos da Antiguidade - Delfos, Diana, Sibilas e cultos solares praticados na
Inglaterra, França e na Península Ibérica.
Essas festas encontraram solo
fértil para se desenvolverem no nordeste brasileiro, criando raízes populares
bastante fecundas e profundas. Obviamente, modificaram-se ao longo da história
e adaptaram-se aos novos tempos. Mesmo com o processo de globalização, há a
resistência cultural de se manter a chama da tradição dos festejos juninos em
Sergipe.
O importante aqui é realçar que a tradição pode ser pensada como um espaço
vital da cultura por enfatizar que ela tem pouco a ver com a mera persistência
das velhas formas, mas está relacionada às formas de associação e articulação
dos elementos que podem ser incorporados ou não a ela. Daí o caráter histórico
e processual das identidades locais e regionais que persistem e se (re)inventam
dentro da nova cultura global. Afinal de contas, para além da visão conformista
da cultura popular, a força das festas juninas em terras sergipanas mostra como
o campo da cultura é um campo de batalha permanente, onde não se obtém vitórias definitivas, mas há sempre posições estratégicas
a serem conquistadas ou perdidas.
Nesse sentido, a universidade tem a
obrigação de dialogar com a cultura popular, não se comportando de forma
negativa com a produção cultural subalterna. Isso não apenas por meio de
pesquisas histórico-antropológicas, mas também construindo um calendário acadêmico
adequado à cultura local. Pergunto aos leitores quais os estudantes
comparecerão na aula do dia 24 de junho próximo?
Sobre o outro feriado local, não me
alongarei, pois penso que a saudosa professora Maria Thétis Nunes escreveu
artigos suficientes para que os leitores conheçam um pouco da história de
Sergipe. Minha esperança é que aqueles que fizeram o calendário da
pós-graduação na Universidade Federal de Sergipe também o façam.
Parece-me uma atitude um tanto paradoxal: a Universidade oferece a disciplina Estudos Culturais, que procura olhar para as práticas culturais de modo mais abrangente, percebê-las como uma forma de entender a sociedade, e passa por cima de expressões culturais locais.
ResponderExcluirBom, se os estudantes estiverem compreendendo a cultura como uma forma de debate daquilo que está na sociedade, não comparecerão. Do contrário, estarão todos lá.
Anderson Frasão.